domingo, 19 de agosto de 2012

Excerto das Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano

IMAGEM: Theodoro de Bry (1528-1598), “Pizarro suelta los perros”. Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo,para os indígenas, o contato com a morte. As disposições legais que desde 1537 protegem os índios do Brasil voltaram-se contra eles. De acordo com o texto de todas as constituições brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que quanto mais ricas são estas terras virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime. A caça de índios foi deflagrada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior selva do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo “sonho americano”. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos lançaram-se sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Esta invasão norte-americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastros e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais vultosos, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que foram realizadas. Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do extinto Serviço de Proteção aos índios, designado pelo presidente Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968. A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da economia latino-americana. É verdade que há tribos brasileiras ainda encerradas na selva, comunidades do altiplano isoladas por completo do mundo, redutos de barbárie na fronteira da Venezuela, mas no geral os índios estão incorporados no sistema de produção e no mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma ordem econômica e social onde desempenham o duro papel dos mais explorados entre os explorados. “O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original” - I TOMO DE O CAPITAL, KARL MARX

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. – Ah! Retrucou o selvagem, tu me conta maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? – Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem? Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Balada da Esplanada, de Oswald de Andrade

Ontem à noite Eu procurei Ver se aprendia Como é que se fazia Uma balada Antes de ir Pro meu hotel. É que este Coração Já se cansou De viver só E quer então Morar contigo No Esplanada Eu queria Poder Encher Este papel De versos lindos É tão distinto Ser menestrel No futuro As gerações Que passariam Diriam É o hotel É o hotel Do menestrel. Pra me inspirar Abro a janela Como um jornal Vou fazer A balada Do Esplanada E ficar sendo O menestrel Do meu hotel Mas não há, poesia Num hotel Mesmo sendo 'Splanada Ou Grande-Hotel Há poesia Na dor Na flor No beija-flor No elevador

domingo, 1 de abril de 2012

A Mãe, de Máximo Gorki

Todos os dias, o apito pungente da fábrica cortava o ar enfumaçado e pegajoso que envolvia o bairro operário e, obedientes ao chamado, seres sombrios, de músculos ainda cansados, deixavam seus casebres, acanhados e escuros, feito baratas assustadas. Sob o frio amanhecer, seguiam pela rua esburacada em direção às enormes jaulas de pedra da fábrica que os aguardava desdenhosa, iluminando o caminho lamacento com centenas de olhos empapuçados. Os pés pisavam na lama. Vozes sonolentas emitiam roucas saudações, palavrões dilaceravam, raivosamente, o ar. Mas eram diferentes os sons que acolhiam os operários: pesadas máquinas em funcionamento, o resfolegar do vapor.

As enormes chaminés negras, qual grossas toras de madeira, apontavam para o céu, dando ao ambiente um ar sombrio e severo.

Com o por do sol, cujos raios vermelhos iluminavam, cansados, os vidros das casas, a fábrica vomitava os seres de suas entranhas de pedra, como se fossem escória, enegrecido pela fuligem, sujos, fedendo a óleo, com o brilho branco dos dentes famintos. Agora, suas vozes demonstravam mais vida e até mais alegria. Por ora, a tortura violenta do trabalho havia terminado. Aguardava-os, em casa, o jantar e o descanso.

O dia consumira-se na fábrica, suas máquinas sugaram de seus músculos toda a energia de que necessitava. Mais um dia irremediavelmente riscado de suas vidas, o homem dera mais um passo em direção ao túmulo, mas ele antevia, apenas, o gozo imediato do descanso, as alegrias do bar repleto de fumaça e sentia-se satisfeito.*

*abertura

domingo, 25 de março de 2012

XXXVI - O vampiro, de Baudelaire

Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste.

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,

Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!

Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.

Ai de mim! com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,

Imbecil!- se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!"

Charles Baudelaire (1821-1867)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Reformar o pensamento para reformar a Comissão Nacional da Verdade

A luta pela instauração e funcionamento da Comissão Nacional da Verdade reflete os anseios do povo em buscar a defesa da memória, da verdade e da justiça da nação brasileira, com o objetivo de fortalecer o Estado de Direito e Democrático. Neste sentido, configura-se como um instrumento popular e de combate àqueles que violaram os direitos humanos e a construção da cidadania na sociedade na época da Ditadura Militar.

Proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2009, a Comissão Nacional da Verdade vai investigar através de sete membros escolhidos pela Presidência da República, carniceiros e assassinos que atuaram entre 1946 e 1988. Enviada ao Congresso Nacional em maio de 2010, a ação do Executivo é inspirada e concatenada com a experiência de vários países que tiveram suas veias abertas como Uruguai, Equador, Peru, Panamá, Timor Leste, Serra Leoa, Libéria, Quênia e vários outros países.

No entanto, a experiência brasileira corre sério perigo de se tornar mais um instrumento ineficaz. Além de estar impedida de fazer justiça, pois não pode punir as quimeras de outrora, a Comissão sofre com a ilegalidade de direitos estruturada pelo aparelho judiciário do governo dito democrático, “onde está reservado o direito de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis; (...)por um jogo que se desenrola nas margens da legislação – margens previstas por seus silêncios, ou liberadas por uma tolerância de fato”.¹

Sancionada pela presidente Dilma Roussef em 18 de novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade já passou por diversas mudanças, principalmente para atender queixas dos militares (muitos, inclusive, componentes do atual organismo estatal). Adendos como a retirada do texto do termo “repressão política”, o tempo muito curto de dois anos para os membros da Comissão diagnosticarem os culpados e a não obrigatoriedade dos acusados de comparecerem aos depoimentos, além da proibição de poder punir ou recomendar que os mesmos sejam condenados, tornam obsoleta esta nova arma do povo.

Talvez a mudança de mentalidade dos engajados nesta vigilância e punição seja necessária para evitar que as coisas mudem para permanecerem do mesmo jeito. Desse modo, a reforma do pensamento repensaria a reforma e incluiria todos os corruptos como alvos das acusações, pois a ilegalidade dos direitos – fraudes, evasões fiscais, operações comerciais irregulares e inúmeras outras violações - acarreta na morte e tortura de milhares de seres humanos no Brasil. Segundo o filósofo francês Michel Foucault, os suplícios diretos sempre deixam marcas indeléveis na sociedade e, consequentemente, o anseio por punição dos acusados.

Contudo, além da justiça contra aqueles que roubam tua carteira ou praticam a repressão física direta, está na hora de parar-nos de aplaudir e de ser conivente com aqueles que roubam e matam milhões de pessoas todos os dias. Através dessa mudança mental, intrínseca a correções na legislação da Comissão Nacional da Verdade, será possível alcançar o verdadeiro Estado de Direito e Democrático do nosso país e alcançar o tempo perdido.

Notas:
1. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete. 38. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. pag. 84.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Deus-verme, de Augusto dos Anjos (1884-1914)

Factor universal do
transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na
miséria,
Verme - é o seu nome obscuro
de batismo.

Jamais emprega o acérrimo
exorcismo
Em sua diária ocupação
fúnerea,
E vive em contubérnio com a
bactéria,
Livre das roupas do
antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas
agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras
magras
E dos defuntos novos incha a
mão...

Ah! Para ele é que a carna
podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior
porção!