terça-feira, 12 de maio de 2009

Mestre Vitalino, trancado vivo


Vitalino Pereira dos Santos, nosso Vitalino, é um dos maiores escultores em barro do Brasil. Nasceu, faz um século, no lugarejo Ribeira dos Campos, perto de Caruaru. Em seu depoimento a René Ribeiro, da Fundação Joaquim Nabuco, diz: "Eu, alem de analfabeto, criei-me trancado vivo, (...) cismado que só saguim criado no meio do mato." Seu pai era agricultor e a mãe, além de trabalhar em casa, ajudava nas lides da roça e fazia louça de barro na entressafra.
Mudou-se desse ambiente rural para o Alto do Moura, bairro de Caruaru. A grande transformação e aceitação do seu trabalho na feira daquela cidade, feira famosa da região, obrigou-o a mudanças. Quando menino, fazia "louça de brincadeira", pequenos animaizinhos e vasilhas, com as sobras de barro da louça que sua mãe produzia para vender na feira.
Foi grande o sucesso que causaram na feira de Caruaru as suas "invenções", como qualificavam as peças do seu oficío os companheiros ceramistas. Com sua chegada, passou a atuar como mestre entre os artesãos. Formou-se ali, em torno dele, a primeira geração de bonequeiros: Zé Caboclo, Manuel Eudócio, Zé Rodrigues e outros. Vitalino foi o primeiro a retratar, na região, a vida no sertão e na cidade. Inicialmente figuras isoladas, como O caçador de onça, a que se seguiram grupos que retratam desde o trabalho agropastoril do camponês até o seu desterro, nas representações que faz dos retirantes, tão adequadas à sua linguagem dramática, solidária e expressionista. Fixa igualmente ritos de passagem - nascimento, casamento e morte - e ergue do barro figuras míticas de cangaceiros, bois, lobisomens sangrando homens, o diabo tripudiando sobre o bêbado.
A crescente popularidade, local e nacional, trazida pelo trabalho inovador, em nada altera seu comportamento. Religioso, expansivo na idade adulta e com gosto pelo convívio, Vitalino tinha prazer em conversar com o público na feira, em beber com os amigos, tocar na banda de pífanos. Seu modo comunicativo e alegre de ser, contraposto à dura condição da sua vida material, reflete-se em composições como Homem foliando samba, Vaqueiros, Queda de braço, Banda, que mostram o artista gostando de estar no mundo, entre os homens.
Foi uma exposição organizada por Augusto Rodrigues, no Rio de Janeiro, 1947, - prefaciada pelo poeta Joaquim Cardozo - que revelou Vitalino para o grande público. Esse fato, um dos indicadores da "descoberta" das artes do povo pelas elites intelectuais, é consequência do processo histórico-cultural ligado às premissas do Movimento Modernista de 1922 e do Movimento Regionalista do Recife.
Tratava-se de tornar visíveis, para a norma erudita, os valores das culturas do povo, que até hoje mantém com a primeira e entre si uma grande circularidade, que confere à civilização brasileira uma fisionomia plural, híbrida, única no mundo, conforme Lélia Coelho Frota, na costumeira argúcia, observa muito bem.
O fato é que Vitalino alinha-se hoje entre os grandes artistas brasileiros, uma vez que estão ultrapassados os obstáculos epistemológicos que consideravam a arte do povo inferior à arte de tradição letrada ocidental.
A arte do povo tem, a partir do século 20, autoria, padrões de gosto e fruição estética próprias, de forte representação simbólica e invenção formal. Em Flauta de Papel, o poeta Manuel Bandeira escreve várias páginas sobre Vitalino e diz que a significação plástica dos bonecos de Caruaru "valia a de Lipchiz", considerando-os realmente "obras de arte".
Os trabalhos de Vitalino colocam-nos diante de "toda uma vida sentida e comentada", como bem observou, em 1947, Joaquim Cardozo, na sua apresentação da primeira mostra de Vitalino e seus companheiros, no Rio. Nesses até então desconhecidos escultores do povo, o olhar radiográfico de Cardozo souber ver "uma riqueza formal e uma emoção particular e duradoura". Décadas depois, as palavras do poeta são válidas para quem se encontrar no pórtico do conhecimento da obra de Vitalino:
"Aqueles que entrarem nesta sala, livres de conceitos, prejulgados ou com o espírito cuidadosamente desprovido dos símbolos e expressões neles criados pelo automatismo da memória, verão que as formas puras da beleza nem sempre repousam nas terras altas da ciência e da sabedoria dos grandes artistas, mas descem, como pássaros divinos, sobre a igualdade dos homens comuns."
Apesar de ter a sua obra exposta no Museu de Arte Popular de Viena e em grandes museus nacionais, Vitalino, cujo centenário celebramos, morreu de varíola, em 1963, pobre e famoso, no Alto do Moura. Hoje, mais de 500 famílias vivem ali da arte do barro, que ele inovadoramente implantou na cidade, maior centro de ceramistas na América Latina.

Um comentário:

Caio "Caranguejo" Rodrigues disse...

Este texto foi redigido por Marcos Antônio Vilaça, da Academia Brasileira de Letras