sexta-feira, 26 de março de 2010

Kurozawa, um ícone centenário


Difícil cartografar o extenso deserto que separa o nascimento de um homem e a sua transformação em cânone. Nem o sangue mais denso dá a imortalidade a alguém, senão a competência em esculturar as contingências que se impõem. No caminho traçado pelo cineasta japonês Akira Kurosawa, uma muralha se atravessava de antemão, com o peso irremovível de uma história de reclusão nacional. A força poética de suas imagens, porém, francamente exibidas numa tela encampada do outro lado do muro - o Ocidente - revelaria o que é dado histórico: espontaneamente, o isolamento se revela miragem.

Kurosawa nascia no dia 23 de março de 1910 - completaria centenário na última terça-feira. Veio ao mundo décadas após o fim do regime feudalista que mantinha o Japão amplamente rural, àquela altura alheio à maciça industrialização que acometia boa parte do planeta. No ínicio do século 20, restara ao País uma cultura que ainad se mantinha hermética à influência européia ou americana. O diálogo se abria aos poucos, fosse pela via do atrito político, descambada em guerra, ou pela progressiva chegada de produtos ocidentais no país, entre eles os filmes. Faminto, Kurosawa começou a conhecê-los ainda jovem, apaixonado pelos ícones iniciais do que viria a ser o cinema clássico.

Entre as décadas de 1940 e 1990, o cineasta realizaria 30 obras, virando ele mesmo um dos nomes estampados em qualquer cartilha para iniciantes na história da arte cinematográfica. Com a sua morte, em 1998, ficou legado artístico que influenciou abertamente o cinema europeu e americano. Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, George Lucas e Martin Scorcese, quarteto emblemático das últimas décadas hollywoodianas, herdaram de Kurosawa certo perfeccionismo de autor, negando a intrusão de qualquer escorregão possível na semântica entre trama e acabamento plástico.

Sua trajetória afinou cada vez mais o flerte com o cinema ocidental - foram produções americanas, adaptações por americanos e europeus, uso de atores americanos - o que gerou amplo reconhecimento de crítica e mercado do lado de cá - se "lado de cá" ainda fizesse sentido depois dele. Num suposto e datado lado de lá, restaram outros grandes nomes, como Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu, nunca postos no mainstream, e críticos ferrenhos, que se opunham ao intercâmbio. É no entremeio que ficaram obras como Os Sete Samurais (1954), Dodesukaden (1970) e Ran (1985), entre tantas outras. Onde mais, senão perdidos pelo caminho, poderíamos enxergar as duas margens de um território tão vasto?

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