sexta-feira, 26 de março de 2010
Um intérprete de dois mundos
"Kurosawa foi, possivelmente, o cineasta oriental que mais estabeleceu relações com a cultura ocidental", acredita o jornalista, crítico e doutor em cinema pela Sorbonne, Alexandre Figueirôa. "O cinema dele é universal, capaz de ser compreendido em qualquer lugar, isso sem perder os valores intrínsecos à cultura japonesa, seja na maneira de articular narrativas, no cuidado com as composições ou, por exemplo, na forma que adaptou histórias de Dostóievski ou de Shakespeare", reflete.
Foi quando adaptou O Idiota (1951), de Dostóievski, que Kurosawa começava a despontar no Ocidente. Um ano antes, havia realizado Rashomon (1950), filme adaptado de textos literários de Akutagawa Ryunosuke que lhe garantiu o Grande Prêmio do Festival de Veneza e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Retrato de um assassino dividido entre as visões de quatro personagens, ficou marcado pelo dispositivo narrativo. "Mesmo sendo a adaptação de uma obra literária, o filme estabeleceu um modelo de narração calcado em diversos pontos de vista. Tornou-se um marco", afirma Ernesto Barros, jornalista, crítico e programador de cinema.
Foi também nesta época que o cineasta consolidou a parceria com o ator Toshiro Mifune, com quem trabalhou 16 vezes desde O Anjo Embriagado (1948), incluso o caso de Rashomon. Tudo acontecia ao mesmo tempo: enquanto galgava a internacionalização, Kurosawa se estabelecia como referência e começava a inspirar revisões ocidentais. Rashomon, por exemplo, deu origem a Quatro Confissões, remake dirigido em 1964 por Martin Ritt, estrelado por Paul Newman.
As trocas iam e vinham em mão dupla. Da cultura clássica, Kurosawa resgatou Shakespeare em Macbeth (Trono Manchado de Sangue, 1957) e Rei Lear (Ran, 1985), esta uma das mais caras obras transformadas em monumento. Enquanto isso, americanaos e europeus traduziam seus filmes em legado, por vezes em westerns que se tornaram clássicos. Os Sete Samurais (1954), filme em que aldeões oprimidos resolvem guerrear por comida, virou Sete Homens e um destino pelas mãos de John Sturges. Já O guarda-costas (1961) deu origem a Por um Punhado de dólares (1964), de Sergio Leone.
Escritor, cineasta e jornalista, Fernando Monteiro, observa o contra-ponto. "O perfil universalista de Kurosawa terminou eclipsando outros nomes japoneses, como Mizoguchi, que considero artisticamente mais interessante. A redenção do Ocidente a Kurosawa se assemelha à que houve a Fellini, que eclipsou outros cineastas italianos, como Valerio Zurlini", diz.
Críticas pela ocidentalização causaram grave depressão no cineasta, que chegou a tentar suicídio. A má fase veio após Dodesukaden (1970), filme que remonta o cotidiano de habitantes de uma favela em Tóquio. Kurosawa passou a ter cada vez mais dificuldade em angariar recursos japoneses, salvo pelo interesse de George Lucas e Francis Ford Coppola, que garantiram a finalização de Ran (1985), um clássico pictórico, e o inseriram de vez na rota da produção em Hollywood.
Em termos artísticos, foram mudanças evudentes, mas não essenciais. "Nos filmes em preto e branco, Kurosawa se concentrava mais em elementos romanescos da narrativa. Após o advento da cor, passa a ter um cuidado com a composição que se realça a cada filme", diz Figueirôa. "Uma obra como Ran ultrapassa qualquer referência na cinematografia mundial: cada figurino, cada detalhe de composição é impecável. Kurosawa trabalhava as cores como um artista, e nem por isso passou a subestimar as tramas", aponta.
Parte de suas obras está sendo relançada no Brasil pela Europa Filmes. Um pack reúne quatro delas (Os sete samurais, 1954, Cão Danado, 1949, Céu e Inferno, 1963 e Sanjuro, 1962), além de Depois da Chuva (1999), roteiro que Kurosawa morreu antes de filmar, realizado por um de seus assistentes, Takashi Koizumi.
de Luís Fernando Moura (lmoura@jc.com.br) e colaboração de Paulo Sérgio Scarpa.
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